Turno da noite

São uma hora e quarenta e cinco minutos, Kassen está mais uma vez fazendo o turno da noite no manicômio judiciário St. Pauli. Sentado em sua cadeira, dando a ultima tragada no cigarro Malboro que ganhou do amigo César antes de entregar o plantão. No prédio, prevalece à escuridão, as luzes são apagadas para que os interditados possam dormir. O silêncio é a única companhia nessas noites de inverno.

Kassen tem pouco mais de quarenta anos, barba rala, está assistindo um típico programa religioso que passa na pequena TV de 19”.

-Atenção você, irmão que está me ouvindo agora, neste momento, o senhor Jesus tem uma missão para a sua vida!

Kassen é um homem religioso, ouve com atenção as palavras do pastor, sente-se hipnotizado com a força da palavra de Deus.

TRIM TRIM

-Manicômio judiciário St. Pauli, boa noite – Kassen atendeu ao telefone assustado, estava concentrado no programa e na missão que Deus tinha para a sua vida.

-Boa noite Kassen. Você verificou as celas hoje? Uma voz de mulher falou do outro lado da linha.

-Como assim? Se eu verifiquei as celas? Quem está falando?
A linha do outro lado ficou muda e deixou Kassen sozinho com o telefone em mãos. O vácuo deixado pelo telefone mudo despertou uma grande sensação de vazio. Dentro daquele prédio cheio de pessoas loucas Kassen era o único lúcido. Há poucos minutos atrás pensava ser esse apenas mais um trabalho noturno que ele pegava para sustentar a família, agora estava refletindo sobre estar só com pessoas capazes de fazer as piores atrocidades que podia imaginar.

-Ouça-me irmão! As mensagens do Senhor são misteriosas para quem não tem fé! Se você tem fé saberá quando Deus está falando com você! Será que agora, hoje, você não recebeu um sinal do Senhor Jesus? Quantos são os que oram dias e dias em busca da salvação enquanto o Senhor está falando com eles o tempo todo? – O pastor na TV falava olhando fixamente para a câmera, apontava o dedo indicador para a tela, para quem estivesse assistindo o culto. Ele falava diretamente com Kassen.

-O Senhor meu Deus falou comigo através dessa ligação, preciso verificar as celas, deve estar tudo certo, mas não quero me arriscar, talvez eu esteja perdendo a oportunidade de receber a unção sagrada se não fizer isso.

Kassen acendeu a lanterna e foi andando em direção a ala em que os loucos ficam presos. Passou por vários laboratórios e salas de médicos psiquiatras, chegou ao extenso corredor com portas de ferro, grades reforçadas, no final do corredor apenas uma luz fraca iluminava a escada para o segundo piso onde outros tantos loucos ficam internados. Ele subiu degrau por degrau lentamente, a escada é extensa, tudo está escuro como ele nunca havia visto antes, as únicas coisas que podem lhe dar senso de direção são a lâmpada amarelada no final do caminho e o gotejar monótono de alguma infiltração nos canos. Kassen sente medo, mas a fé do pastor lhe da forças para prosseguir.

O corredor do segundo andar grande, a única iluminação ali são as fracas luzes que não chegam até o final do corredor, é impossível sabe aonde ele termina. Nas paredes há várias celas, grades resistentes mantêm os loucos presos. O cheiro ali é insuportável, a umidade toma conta de todo o lugar criando uma áurea de pavor no coração de Kassen. Sua garganta está seca, todos os sentidos estão a mil por hora, alerta como uma caça, as mãos suam frio, a vontade de sair daquele lugar é imediata, mas ele não pode lançar mão de um chamado de Deus. Deus quer ele lá, Deus tocou o telefone para que lá ele estivesse e lá ele está, não vai sair sem cumprir o seu dever, ele precisa checar se todas as celas estão devidamente trancadas.

Kassen, no inicio do corredor olha para os lados, as sombras na cela não permitem que ele veja seu interior, ele dá um passo vagaroso para frente a fim de enxergar melhor. Ao primeiro passo ele sente como se alguém tivesse passado por trás dele, Kassen vira rapidamente e procura alguma coisa, olha cada detalhe na parede cheio de mofo, verde, suja, olha no chão encardido e nada encontra. Ele sente um alivio, ia ser uma péssima hora para encontrar algum tipo de assombração.

-Olá irmão - A voz de um homem sussurra ao seu ouvido e faz Kassen virar rapidamente dando um pulo para trás. O pastor que falava com ele na TV estava ali na sua frente. Moreno, um pouco acima do peso, usando terno e gravata, nada de muito diferente de tantos outros pastores que tem na televisão.

-Pa...Pastor, o que o senhor está fazendo aqui? Kassen pergunta assustado, resignado com a imagem superior que ele sempre teve dos pastores que pregam a palavra de Deus.

-Eu que lhe pergunto Kassen, o que o senhor está fazendo aqui?

-Quem? Eu? Ora, eu estou respondendo ao chamado do Senhor Jesus ao qual o senhor me alertou?

-Que sinal Kassen?- O pastor estava coberto pelas sombras daquele lugar macabro, cercado pelas sombras apenas seus olhos brilhavam formando um estranho espectro negro.

-Ora, o telefonema que eu recebi falando para verificar as celas – Kassen sentia-se ameaçado diante daqueles olhos que ficavam cada vez mais brilhantes.

-E quem disse para você que Deus conversa com as pessoas pelo telefone? Por acaso ele tem algum rol de chamadas? Qual o código de área do paraíso?- Grandes dentes apareceram através de um macabro sorriso na escuridão.

Kassen curvou-se ainda mais em direção ao chão, suas pernas perdiam as forças diante do medo, o homem baixinho corpulento agora parecia ser maior, como um ser sobrenatural.

-Senhor Jesus Cristo, por que me escolheu para essa missão? Kassen sentia-se resignado, aquele homem é o pastor, isso ele não tinha dúvida, o homem que recebia o chamado de Deus para pregar a palavra na Terra estava ao seu lado desafiando a sua fé em Jesus Cristo, ele não podia negar a nada naquele momento, essa era sua hora sagrada em que teria a revelação divina.

-Pobre Kassen, sabe, eu gosto de pessoas como você. Espírito resignado, pronto para obedecer a tudo e a todos, conformado com o péssimo emprego, conformado com a esposa que nunca vai fazer um bom sexo oral que você sempre quis.

Kassen já estava sentado no chão, apoiado em uma das mãos e sem tirar os olhos naquele homem. O pastor se aproximava cada vez mais de Kassen, olhando-o fixamente nos olhos buscando a sua alma.

-Sabe, às vezes eu me pergunto por que algumas pessoas simplesmente são tão estúpidas. Vamos se levante, não fique ai me olhando como se fosse um pobre cordeiro de Deus prestes a ser abatido no inferno.

O homem baixinho pegou Kassen pelo braço, ele era forte o colocou sentado em uma cadeira de ferro.

-Vamos beba uma água menininha – Ele deu a Kassen um grande copo de água bem gelada como se tivesse tirado aquilo da manga.

-Olha só, vamos recapitular os fatos. Você estava vendo um programa de televisão, um homem que se diz correspondente imediato de Deus diz que você deve escutá-lo e como bom cristão que você é, o escuta. Então toca o telefone e uma pessoa pergunta se você verificou se as celas estão trancadas. Eis então que, enquanto eu te observava vi o tamanho da sua tolice. Você Kassen acreditando estar recebendo um chamado divino veio até aqui verificar se todas as celas estavam realmente trancadas.

-Eu precisava fazer isso, não conseguiria dormir a noite se não viesse para cá, você não entende? Se não fosse nada eu voltaria com a consciência limpa, mas agora vejo que foi Deus que mandou eu aqui para estar conversando com você, seja lá o que você for- Kassen engoliu seco, aquelas palavras saíram piores do que ele imaginava, depois de dizer aquilo ele continuou olhando para o homem, agora que ele havia saído das sombra podia vê-lo melhor, moreno, com o cabelo bem curto e crespo, se não fosse pelos olhos brilhantes como rubis e o sorriso sarcástico no rosto ele estava perfeitamente parecido com tantos outros pastores da sua igreja.

-Kassen, você esqueceu-se de um pequeno detalhe. O sistema de alarmes é computadorizado, se alguma cela estivesse aberta você seria acionado imediatamente- Os dentes daquele homem ficaram ainda mais a mostra.

-Santo Deus, o que eu estou fazendo nesse inferno? Kassen olhava em sua volta, as paredes podres pela infiltração, sujas, sem reformar, não se lembrava porque havia aceitado aquele emprego de vigia em um hospício.

-Venha comigo Kassen, vou-lhe mostrar por que você está aqui.

Aquele homem com o olhar em chamas levantou Kassen da cadeira como se ele fosse uma pluma. Kassen sentia-se como um zumbi, sem esperanças em nada além de Deus, ele ainda tinha esperança de que aquilo era uma prova Divina que ele tinha de enfrentar e decidiu que não faria oposição a nada vindo daquele ser pois confiava plenamente em Deus.

Os dois andaram pelo extenso corredor, viraram em outros tantos corredores daquele andar sem falarem uma palavra um com o outro. Kassen estava atrás olhando apenas a sombra daquele homem diminuto se movendo entre grandes corredores. Por mais que tentasse tudo o que Kassen via eram apenas sombras, sentia que cada cela estava repleta de trevas, cada um ali vivia o seu inferno particular, o cheiro era forte, a umidade o fazia ter calafrios naquele lugar tão macabro. Eles continuaram andando até que chegaram a uma cela, tão escura quanto todas as outras.

Quando Kassen olhou para o lado estava sozinho no corredor, não havia nenhum sinal de que aquele homem tão parecido com o pastor da igreja havia estado ali há pouco tempo.
Ele olhou para frente, dentro da cela e ali viu alguma coisa se movendo. Encurvou-se um pouco mais a fim de enxergar melhor, viu apenas um cabelo grisalho se movendo entre as sombras, era o velho senhor Pedro Mascate. O Pobre coitado envolveu-se até onde não podia com a magia negra, matou pessoas, animais, transou com todo o tipo de coisa e vez ou outra aparecia com doenças venéreas, por conta de um grande choque emocional já não falava há muitos anos.

-Ei Pedro! É hora de dormir – Falou Kassen

Kassen virou-se de volta em direção a saída daquela galeria de corredores que abrigavam todo o tipo de esquecidos pela sociedade, ao virar-se aquele pequeno homem estava novamente em sua frente, um charuto grande soltava uma espessa fumaça que tomava conta do local.

-Ei! Você não pode fumar aqui dentro seu pilantra!- Por um momento Kassen sentiu como se tivesse recobrando os sentidos, sua personalidade parecia estar mudando.

A fumaça daquele charuto começou a tomar conta do corredor enquanto do homem só se via dentes e os olhos ficando cada vez mais brilhantes e vermelhos.

-Ei o que está acontecendo aqui? Kassen sentiu-se imobilizado e aos poucos era dragado pela fumaça que o arrastava até a cela de Pedro Mascate.

-Ora Kassen, não parece óbvio? Você está cumprindo sua unção sagrada. HAHAHA! As risadas daquele ser ecoavam cada vez mais na cabeça de Kassen, era estridente e seus ouvidos doíam, ele estava sendo engolido pela fumaça do charuto até que já não conseguia mais abrir os olhos.

Kassen abriu os olhos novamente em meio a uma escuridão macabra,não conseguia identificar aonde poderia estar, sentiu baratas andando pelos seus pés, o cheiro de esgoto misturado a dejectos humanos embrulhava o seu estomago e o fizeram vomitar. Olhando para frente viu grades de ferro que o separam do longo corredor do hospício St. Pauli.

-Maldito Pedro Mascate, o que fez comigo?

A sombra de Pedro Mascate se formava a sua frente, era magro e alto, só isso podia ser visto com a ajuda da única lâmpada velha que ficava no final do corredor.

-Eu não fiz nada contigo Kassen, você é quem fez. Onde está o seu Deus agora? Um sorriso sinistro se abria no meio da escuridão.

A sombra de Pedro Mascate saiu por aquele corredor acompanhado de outra sombra ainda mais sinistra. Um ser grande e forte, parecendo ter patas como algum animal bovino. Kassen apenas conseguiu ouvir uma voz macabra, grave como se tivesse saído das profundezas.

-Essa foi uma bela noite para os malditos servos de Deus.

Na antiga cela de Pedro Macate, restou apenas o corpo de Kassen, sujo, fétido, em nada se diferenciava dos outros internados daquele lugar. Apenas os lamentos podiam ser ouvidos e ficaram para sempre nos corredores escuros do manicomio St. Pauli.

Legaaaaaaaaaaaaal (:

bigaduh

Gostei ^^

bigaduh s2

De nada ^^

s2