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AS CRIANÇAS DA PONTE

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Mensagem por Ornela Ter 30 Nov 2010, 13:19


Ao longo de nossa existência acontecem situações de difícil absorção ou aceitação. Passados quase dois meses do fato, continuo a me perguntar se o que aconteceu foi real ou mero devaneio momentâneo por breve privação de sentidos. Asseguro-lhes, no entanto, que a narrativa a seguir adota dois critérios antagônicos: incredulidade e veracidade. Não peço que acreditem. Sinto-me trêmulo, trancado em meu quarto diante do notebook e faço tal relato como forma de desabafo. Busco relativo alívio, posto que desde o ocorrido, não tive a coragem necessária para relatar a ninguém o que vem me abatendo nos últimos dois dias. Minha idéia inicial era simplesmente esquecer, contudo, diante dos últimos acontecimentos sinto-me impelido a noticiar as horas de angústia e horror que tenho suportado.

Sou um rapaz sério e compenetrado, filho único de uma mãe amorosa e íntegra. Trabalho desde os quinze anos para ajudá-la, uma vez que me criou sozinha, com muito sacrifício e determinou todo embasamento de caráter e decência para eu me tornar o homem que sou hoje. Estou concluindo o curso de Odontologia e minha vida atualmente é uma verdadeira maratona entre o trabalho, os estudos e os estágios. Moramos somente eu e ela num bairro simples, num apartamento mais simples ainda, única herança que meu pai nos deixou antes de partir para a África com uma companhia mineradora. Eu estava com cinco anos e até hoje não sabemos notícias.

Hoje com 24 tenho poucos amigos que não cansam de dizer para eu aproveitar mais a vida. Falam que sou velho demais, careta demais... Sou muito caseiro e bastante introspectivo. Ao contrário de minha mãe que adora sair, especialmente para dançar. Comprei no inicio deste ano uma scooter. Para os que não conhecem, é uma moto pequena, de baixa cilindrada e bastante econômica. E foi justamente por economia de tempo e dinheiro, além da praticidade, que adquiri tal veiculo. Moramos numa metrópole onde o transporte público é um tanto deficitário e eu, decididamente, detesto depender dele. Tenho uma avó paterna que mora a 85 km daqui, longe de toda essa agitação de cidade grande. Foi no dia do aniversário dela que tudo começou. Vó Clarisse, viúva a mais de dez anos, leva uma vida pacata ao lado da neta, minha prima Denise.

Naquela semana foi minha mãe quem lembrou a data especial. Iria ser no sábado próximo. As duas nunca se deram bem, e já não se falavam há vários anos. Eu, ao contrário a visitava com freqüência. Afinal é a única vó que ainda tenho. Naquele sábado acordei cedo e fui para o estágio numa clínica, por sorte, próxima a auto-estrada. Meu plano era trabalhar até as treze e trinta e ir direto para Ribeirão Marques, um povoado composto por pequenos condomínios rurais aonde mora minha velha avó. Era a primeira vez que iria com a scooter. Nas visitas anteriores preferi ir com o carro de minha mãe, pois todos sabem que nas rodovias, veículos de quatro rodas são mais estáveis. Naquela ocasião, ela precisava do automóvel para sair com uns amigos à noite e eu tinha a intenção de retornar apenas no dia seguinte. Apressado, saí do consultório levando um presentinho básico nas mãos e um apetite voraz que me corroia as entranhas. Acomodei o pacote no banco, subi na scooter e ganhei a auto-estrada. A idéia era abastecer no posto mais próximo e comer qualquer coisa para aplacar a fome. A tarde estava linda e quente já anunciando o verão próximo. A estrada muito bem pavimentada por conta da empresa concessionária e o baixo fluxo de veículos ofereciam-me a segurança necessária para pilotar.

A viagem foi bastante tranquila, pois eu respeitava a velocidade da via sem a menor pressa de chegar. Deixei a rodovia as duas e quarenta e segui por uma estradinha de chão por mais 11 km até meu destino. Essa sempre foi a melhor parte do passeio. Uma atmosfera bucólica e acolhedora: telhados adornados de casas simples com jardins bem cuidados e pomares apinhados de frutas, charretes vagando com joviais senhoras, crianças saltando no trapiche do rio Miracauna, enfim um povo humilde e sempre hospitaleiro. Como único inconveniente a sufocante poeira vermelha. Entretanto senti naquela tarde certa tristeza implícita. Logo saberia o motivo. Um pontilhão de pedra sobre o córrego sinalizava a chegada já bem próxima. Andei por mais alguns metros e as três em ponto cheguei à porteira da chácara.

Minha avó veio receber-me de braços abertos e com o sorriso largo. Abraçamo-nos por vários segundos. E eu desejei-lhe tudo de bom e toda a felicidade do mundo. Entreguei-lhe o presente: Um rádio novinho, desses para se ouvir na cozinha de manhã enquanto se prepara o café ou o almoço. O que ela possuía não funcionava desde a páscoa. Entramos na casa e lá estava minha prima Denise e mais algumas vizinhas. Cumprimentei a todos e reparei de imediato na mesa ornamentada com toalha belíssima de crochê de linho branco. Um bolo cor de rosa decorado e encimado por incontáveis velinhas amarelas, salgadinhos e docinhos diversos, garrafas de espumante e uma faixa enorme dizendo: “Feliz Aniversário, Clarisse”. Todo esse cuidado foi idéia de Denise que assim como eu, adora a avó. É também a prima que eu mais amo e todas as vezes que eu vou para Ribeirão Marques conversamos por horas a fio, sem perceber o tempo passar. Por volta das cinco a casa já estava bastante movimentada. Minha vó convidara amigos de longa data, muitos eu nem conhecia. Uma estranha atmosfera de consternação notava-se nitidamente no semblante dos convidados. Vi-me obrigado a chamar Denise num canto e questioná-la:

— Aconteceu alguma coisa, Denise...? Notei algo pesado no ambiente desde que cheguei.

— O seu pressentimento está certo, primo. A semana passada aconteceu uma tragédia aqui no povoado. Você não soube? Passou até na TV...

— Tenho andado bastante atarefado nas últimas semanas. Não sobra tempo para nada. Nem para assistir televisão. Você acredita?! Mas... Diga-me o que aconteceu?

— Uma van escolar. Um ônibus antigo que transportava as crianças daqui até o colégio em Capão do Monte... Na volta para casa... Bateu no guardil da ponte, perdeu o controle e caiu no rio... Sete crianças morreram além do motorista e de uma professora que morava na Fazenda Castro Alves.

— Meu Deus...

— Dizem que tentou desviar de uma moto que ia até o armazém do Willy e perdeu o controle. Muitas morreram afogadas...

Fiquei perplexo diante da notícia e soube depois que pessoas naquela sala haviam perdido netos, sobrinhos ou eram diretamente ligados às famílias vitimadas. Eu mesmo conhecia uma garotinha, irmã de um amigo de infância. Retirei-me para o jardim para tomar ar fresco e tentar dissipar meu estado de choque. Minha avó notou minha mudança e logo veio ter comigo falando da dor que toda aquela comunidade estava sentindo e que somente o tempo iria fechar aquela ferida. Conversei com mais alguns conhecidos onde o assunto predominante era o trágico acidente até que Denise chamou a todos para cortar o bolo. Minha avó assoprou as velinhas e um vizinho de longa data fez uma prece e um pequeno discurso. Estávamos todos visivelmente emocionados. Aproveitei para usar a câmera do meu celular para tirar algumas fotos. Afinal não é todo o dia que se comemora setenta anos... Já passava das seis e começava a anoitecer quando os convidados pouco a pouco começavam a se retirar. Eu pretendia ficar aquela noite e voltar no dia seguinte. As sete, minha vó se despediu de Dona Carmem, a última convidada. Eu e Denise aproveitamos para ficarmos mais juntinhos dela. Demonstrava bastante cansaço e resolveu se recolher cedo.

A noite estava quente e abafada e eu e minha prima sentamos nas cadeiras de balanço sob o alpendre desfrutando da suave brisa e do singular céu estrelado. Colocamos a conversa em dia falando por horas sobre os assuntos mais variados: O noivado dela, que não deu certo, a minha conturbada rotina acadêmica e é claro o drama das pessoas daquele lugar. Por volta da meia-noite recebi um telefonema. Foi aí que começou o meu “drama particular”. Heloisa, melhor amiga de minha mãe, me informa que ela passara mal por conta de uma tentativa de assalto, sem graves consequencias, na saída do barzinho em que estavam. Disse que estava com minha mãe em uma clínica por conta de uma crise nervosa. Ao ouvir a palavra “clínica” estremeci. Helô insistia que minha mãe estava bem e que era para eu não me preocupar. Ela inclusive disse que estava ligando sem o conhecimento dela. Desconfiei pelo tom de sua voz que pudesse estar me omitindo algo. Num ímpeto, desliguei o aparelho, expliquei o conteúdo da conversa a Denise e disse que voltaria para casa imediatamente. Ela ainda contestou dizendo que era muito tarde. Pedi que avisasse minha avó, me despedi rapidamente e corri para a scooter.

A sombria noite sem luar, já na saída da porteira quase me fez desistir da empreitada, contudo, naquele momento o que importava era chegar a capital o mais rápido possível. Segui pela estradinha escura, atravessei o pequeno pontilhão e acelerei para ganhar tempo. Não fosse o tênue foco de luz do farol, não podia ver muita coisa naquele breu além da escassa claridade vinda das moradas à beira do caminho deserto. O incidente com minha mãe tomava cem por cento dos meus pensamentos e me enchia de preocupação.

Na saída da curva da mata, a poucos quilômetros da rodovia principal meu pesadelo teve início. Chegando quase a ponte sobre o rio Miracauna avistei de longe um pequeno vulto. À primeira vista indefinido, e conforme me aproximava cada vez mais nítido. Era uma menina de uns seis ou sete anos, moreninha de cabelos compridos, com roupas claras lembrando um uniforme colegial. De imediato lembrei do acidente do ônibus escolar. À medida que me aproximava podia ver melhor e notei que seus pezinhos não tocavam o chão da estrada. Estava estática bem em frente à ponte no meio da estrada. Um arrepio de pavor e pânico atravessou-me a espinha. Acelerei o máximo que pude para poder passar por ela.

Em nenhum instante ocorreu-me a idéia de voltar, pois estava muito perto para recuar. Minha intenção era passar ao lado daquela aparição e seguir adiante. Tive a nítida percepção que tudo acabaria se conseguisse transpor a ponte. A poucos metros da criança não pude deixar de olhar direto nos seus olhos, como se estivesse hipnotizado, mesmo não querendo fazê-lo. De súbito, ela pairando acima do chão veio em minha direção de maneira sutil e eu pressenti a colisão eminente. Virei o guidão para a direita e caí num desnível no matagal que margeava o caminho. A queda da moto foi violenta. Tive sorte porque o mato estava alto e amorteceu meu baque. Perdi a consciência por alguns segundos, mas logo despertei com uma dor lancinante na perna esquerda. Na hora tive a certeza de tê-la quebrado. Antes de desmaiar, na penumbra daquela madrugada pude ainda vislumbrar outras crianças vindo da margem do rio, flutuando no ar em minha direção com suas carinhas pálidas e os olhos fundos e sem brilho. Como uma procissão de almas perdidas querendo se mostrar para mim. A circunstância toda lembrava um terrível pesadelo. Parecia mesmo que eu iria acordar a qualquer momento, ofegante e suado na segurança do meu quarto. Todavia, sem poder me mover, caído e sem nenhuma chance de fuga, minhas narinas foram impregnadas por um cheiro sufocante. Uma mistura de odores que lembravam putrefação. O mesmo que se sente próximo a animais mortos. Deitado, olhei para cima e pude ver um círculo de cabeças me observando debilmente. Lancei com as forças que me restavam, um sonoro urro de medo e horror, e por fim, apaguei.

Acordei sem saber quanto tempo tinha se passado e sendo carregado por socorristas que me conduziram em uma prancha de imobilização até a ambulância. Tive sorte, graças a Deus, um motorista de caminhão, morador da região, passara pela ponte e viu a scooter tombada. Imediatamente ligou para o resgate. De fato quebrei a tíbia e sofri apenas algumas escoriações leves. Fui levado ao hospital em Capão do Monte e fiquei por lá até o dia seguinte quando minha mãe levou-me para casa. Daquela data até agora foram muitos contratempos. Ela também teve que antecipar suas férias no trabalho... Por quê? Para poder me carregar todos os dias até a universidade sob pena de eu perder o semestre e a colação de grau. Nunca imaginei que uma perna engessada pudesse ser tão inconveniente.

Anteontem, enfim retirei o gesso e desde este dia estou sozinho em casa. Minha mãe aproveitou os últimos dias de suas férias para curtir um hotelzinho com o namorado à beira da praia. Garantiu-me que volta amanhã. Eu fiquei por aqui por conta das provas finais. Denise me ligou para saber notícias e contou-me algo bastante bizarro: depois de mim outro motociclista tombou no mesmo local próximo à ponte. Ele e a namorada iam para uma feira agropecuária. A menina teve morte instantânea e ele permanece em coma num hospital aqui da capital. Fiquei bastante intrigado. Sempre me considerei um cara cético e racional. Tenho certeza que existe uma explicação lógica para tudo que aconteceu. Como eu tinha escrito antes, o que eu queria mesmo era esquecer, contudo os acontecimentos das últimas horas não contribuem nenhum pouco para o meu propósito.

Ontem, quando voltava da aula tive a nítida sensação de estar sendo seguido. Na chegada, aqui no prédio ao entrar no elevador, antes da porta fechar olhei para trás e observei com espanto uma silhueta infantil no reflexo do espelho do saguão principal. Foi muito rápido, averiguei e não havia ninguém por lá. Hoje pela manhã, enquanto eu preparava o café ouvi risos vindo do quarto de minha mãe, em seguida o som de algum objeto caindo. Corri até o quarto e deparei-me com o porta-jóias que é também uma caixinha de música onde são guardadas as bijuterias, caído aos pés do roupeiro e todos os anéis, pulseiras e correntinhas, espalhados pelo tapete do quarto. Sempre lembrando que eu estou sozinho em casa como já relatei. À tarde estava pesquisando na rede um estudo sobre implantodontia e, nem sei porque lembrei das fotos do aniversário de vó Clarisse. Apanhei o celular quebrado devido ao acidente e retirei o cartão de memória. Abri as fotos no computador e de imediato senti o mesmo calafrio daquela noite, começando na nuca e se espalhando pelo corpo todo. Reparei junto aos convidados de minha avó figuras desfocadas de crianças. Em uma foto em particular onde está Denise comendo vorazmente uma fatia do bolo, nota-se três vultos ao seu lado e dois acima de sua cabeça. Deletei todas.

Neste momento me preparo para sair logo que termine esta narrativa. Ana Claudia, uma colega de estágio passará aqui em casa para irmos ao cinema. Não pretendo voltar para este apartamento hoje. Venho sentindo desde cedo o mesmo odor fétido daquela maldita noite. Parece que vem da sala... Ou será do corredor? Às vezes parece que o mau cheiro vem debaixo de minha cama...

A campainha toca!

Espero sinceramente que seja Ana.
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